Cicatrização e reparo de tecidos
O cirurgião ortopédico e pesquisador Robert Becker fez, acidentalmente, a descoberta de que íons de prata induzem a desdiferenciação celular, transformando células adultas em células-tronco capazes de promover a regeneração de tecidos. Conheça, abaixo, a saga dessa descoberta.
Curiosamente, os estudos de Becker tiveram origem na Guerra Fria (1). Após o lançamento dos primeiros satélites Sputnik, o governo americano, surpreendido e alarmado com os avanços da tecnologia soviética, antes considerada primitiva, passou a traduzir e distribuir gratuitamente todas as publicações científicas do país.
Foi em uma dessas publicações, a revista Biofizika, que Becker veio a se deparar com um trabalho de A. M. Sinyukhin, da Universidade Estadual de Moscou, que descrevia um fenômeno observado após o corte dos galhos de uma série de tomateiros. Durante a regeneração das plantas, formava-se uma corrente elétrica negativa – um fluxo de elétrons – ao longo da primeira semana e, na segunda semana, a corrente se intensificava e tinha sua polaridade invertida, tornando-se positiva. A descoberta sugeria uma correlação entre fenômenos elétricos e os processos bioquímicos de regeneração. Sinyukhin então realizou um experimento que consistiu em aplicar uma corrente, alimentada por pilhas, em um grupo de plantas recém despontadas, aumentando a chamada ‘corrente de lesão’. Nessas plantas, a regeneração foi até três vezes mais rápida do que nas plantas de controle.
Becker se propôs, então, a estudar o comportamento elétrico nos cotos de membros amputados de animais experimentais. Especificamente, tinha interesse em estudar as salamandras, animais capazes de regenerar completamente os membros amputados. Nesses experimentos, foi verificada uma diferença na corrente de lesão das salamandras em comparação com outros anfíbios, sugerindo uma relação com sua capacidade de regeneração. Nas salamandras, ocorria uma inversão da polaridade para negativo durante a formação do blastema – massa de células desdiferenciadas responsáveis pela regeneração.
Corrente de lesão: salamandra vs. rã
Em outra importante descoberta, Becker notou que durante a cicatrização óssea em rãs, os eritrócitos (glóbulos vermelhos) sofriam uma desdiferenciação, passando por todos os seus estágios de desenvolvimento em ordem inversa. Após três semanas, as células já desdiferenciadas transformavam-se em células formadoras de cartilagem (condrócitos), e estas logo transformavam-se em células formadoras de osso (osteoblastos). Esse processo era acompanhado por uma pequena corrente elétrica, na ordem de picoampères. Becker conseguiu, em seguida, reproduzir o mesmo efeito in vitro, promovendo a desdiferenciação de glóbulos vermelhos de rãs com a aplicação artificial do mesmo campo elétrico.
Outro pesquisador, Stephen D. Smith, conseguiu através dos mesmos princípios de desdiferenciação, e com a mesma corrente elétrica, induzir a regeneração parcial dos membros amputados de rãs, animas normalmente incapazes de regeneração.
Após obter resultados regenerativos similares em ratos, Becker passou a trabalhar com pacientes humanos no hospital para veteranos de Syracuse, no estado de Nova Iorque.
Um dos primeiros pacientes a receber tratamento experimental sofrera fraturas em ambas as pernas em um acidente de trânsito. Após tratamento inicial com tração, com pinos atravessados nos ossos, uma infecção bacteriana obrigou a remoção dos pinos, além de impedir qualquer intervenção cirúrgica. Restou aos médicos imobilizar o paciente com gesso até o peito, condição em que permaneceu durante seis meses até sua admissão aos cuidados do Dr. Becker. A medicina tradicional não oferecia ao cirurgião outra alternativa senão manter o gesso e esperar. Passados outros seis meses sem consolidação, um assistente do Dr. Becker sugeriu que se tentasse a estimulação elétrica nas fraturas do paciente. O paciente foi operado por um furo no gesso, por onde foi introduzido um eletrodo de prata e aplicada a corrente negativa. Após seis semanas de tratamento, a fratura já se apresentava estável o suficiente para liberar o paciente com gesso para andar. Passadas mais seis semanas, a fratura já se consolidara o suficiente para remover o gesso.
No entanto, os trajetos dos pinos ainda apresentavam secreção em razão da infecção. Ocorreu a Becker a possibilidade de utilizar o mesmo eletrodo de prata, porém com a polaridade invertida de negativo para positivo, com o intuito de promover a liberação de íons de prata, conhecidos por seu poder de matar bactérias. Com uma semana desse tratamento, Becker liberou o paciente, receoso de que a corrente com polaridade invertida pudesse prejudicar a consolidação óssea. Foi só um ano mais tarde que o paciente retornou ao hospital, andando normalmente e sem dor. Becker soube que a secreção havia sido interrompida uma semana após a alta do paciente.
Com o sucesso do tratamento com íons de prata, Becker resolveu alternar entre o uso de corrente negativa para estimular a regeneração óssea e a introdução de íons de prata com corrente positiva para combater infecções, apenas substituindo o eletrodo por um material composto por nylon revestido com prata de modo a aumentar a área tratada.
Um dos pacientes tratados com a nova técnica, um jovem caçador encaminhado à clínica para uma possível amputação, sofrera há três anos um acidente com motoneve, fraturando a tíbia direita em três lugares assim como a fíbula. Durante seu tratamento em um hospital da cidade, houve infecção dos ossos fraturados que – mesmo após múltiplos procedimentos cirúrgicos para remover o osso necrosado e tratar a infecção – continuou a se alastrar. Ao ser recebido por Becker, o paciente apresentava uma longa cavidade na parte frontal da canela, deixando totalmente exposto o osso necrosado. Nele habitavam pelo menos cinco tipos de bactérias – um verdadeiro zoológico bacteriano! Mas ainda que houvesse um único tipo de bactéria, a pouca irrigação óssea dificultaria o tratamento com antibióticos. Ademais, não havia um único antibiótico capaz de combater todas as bactérias presentes na perna do paciente. Assim, antes de tratar a fratura, era preciso eliminar a infecção.
Becker embebeu um pedaço do tecido revestido com prata em soro fisiológico e o colocou sobre a lesão, conectando-o a uma bateria e finalizando com gazes. Em uma semana, todas as culturas bacterianas apresentavam-se estéreis e já se espalhava o tecido de granulação, recobrindo o osso antes exposto. Em duas semanas, toda a base da lesão já estava recoberta e a pele já começava a fechar-se, eliminando a necessidade de enxerto, antes considerada certa.
Becker, que até então acreditava que a corrente positiva – a que produz íons de prata – prejudicava a regeneração óssea, resolveu tirar um raio X para avaliar a perda óssea provocada pelo tratamento. Mas o que ele viu o deixou incrédulo. No lugar de perda óssea, ocorrera regeneração! Removendo o gesso e examinando a perna do paciente, verificou que as fraturas haviam se consolidado. O paciente chegou a erguer a perna, que se manteve firme contra a ação da gravidade. Becker continuou por mais um mês o tratamento com gesso e íons de prata, até a cicatrização total da pele. Após esse período, a consolidação óssea já era suficiente para liberar o paciente com gesso para andar e muletas. Depois de dois meses, o caçador retornou à clínica com o gesso todo esfarrapado, sem muletas e distribuindo sorrisos. E os raios X confirmaram: a consolidação estava quase completa.
Em outros pacientes com osteomielite (infecção nos ossos), o tratamento com eletrodos de prata positivos para combater a infecção teve como efeito secundário o reparo de não uniões sem corrente negativa, obrigando Becker a rever sua crença de que somente a corrente negativa promovia o crescimento ósseo e que a corrente positiva o inibia. Começava a surgir a ideia de que, em seres humanos, a desdiferenciação das células fosse resultado da ação do íon de prata, sem participação dos parâmetros elétricos no processo.
Para testar a tese, foi realizado um estudo(2) in vitro com culturas experimentais de células e outro estudo clínico com nove pacientes portadores de lesões crônicas resistentes a terapias convencionais, sendo seis pacientes diabéticos insulinodependentes, quatro deles com indicação de amputação.
Nas culturas experimentais, a exposição aos íons de prata levou, a partir de uma hora de exposição, à formação de uma área nitidamente delimitada em que as células apresentavam alterações morfológicas indicativas de desdiferenciação.
No estudo clínico, os nove pacientes foram tratados com tecido de nylon revestido com cristais de prata, que liberavam íons mediante o contato com o exsudato da lesão. Em todos os pacientes, houve controle da infecção em 3 a 7 dias e em todas as feridas tratadas houve cicatrização com restauração total dos tecidos ao seu estado normal. O tempo necessário para a cicatrização variou de três semanas a três meses, dependendo da extensão da lesão inicial.
Todos os pacientes diabéticos com neuropatia periférica tiveram retorno da sensibilidade normal na área tratada, ainda que não definitivo, voltando gradativamente a perda sensorial em aproximadamente um ano após o tratamento. Apesar dessa perda nos pacientes diabéticos, os demais tecidos regenerados mantiveram-se normais no período de acompanhamento.
Em dois pacientes com lesões graves traumáticas, houve restauração total da epiderme normal, plenamente inervada e com circulação normal. Nesses pacientes, a restauração sensorial foi total e – diferentemente dos casos diabéticos – foi definitiva.
Becker acreditava que a capacidade de induzir a desdiferenciação de células humanas tornaria possível a regeneração de membros e outras partes do corpol (1) no futuro, além de eliminar as questões éticas e problemas de incompatibilidade associados ao implante de células tronco embrionárias (2).
1 - Becker RO. The Body Electric: Electromagnetism and the Foundation of Life. New York. NY: William Morrow & Company: 1985.
2 - Becker RO, Induced dedifferentiation: a possible alternative to embryonic stem cell transplants, NeuroRehabilitation.2002;17(1):23-31, PMID: 12016344